segunda-feira, 18 de março de 2019
Livro Boletim do Tempo (TRECHOS) Carlos Vieira Charles
ALÍCIO NO PAÍS DOS CAMELÔS
– Pois é. Nos tornamos todos camelôs. Com todo esse desemprego, o Brasil tornou-se uma imensa feira... de bugigangas. Esta será a única via de sobrevivência a multidões de trabalhadores desqualificados, não por culpa própria, é claro. Esses são os anos 1990.
– Não, eu não penso assim. A economia vai muito bem e o país está se modernizando rapidamente. Acho que...
– Olha o chiclete, moço! Quer comprar?
– Não, obrigado. Mas, voltando ao papo, eu acho que o presidente está certo e...
– Moço, quer ler a sorte nas cartas?
– Não, obrigado. Mas você, meu amigo, é muito pessimista. Você é um rebelde com excesso de causas... Vive vendo as coisas pelo lado sombrio. Para com isso! A situação não está assim tão...
– Nosso país tem uma história triste. Basta ver esse século que passou. Com tanto atraso e tanto arcaísmo, a mídia instalou-se antes que a maior parte da população fosse sequer alfabetizada. Resultado: o povo virou macaco de auditório. Agora chega a globalização e o desemprego, num Brasil pouquíssimo industrializado... ou seja, o Brasil é um país atropelado pelos outros. Mais um exemplo? No mundo inteiro, os governos estão perdendo o poder, os Estados estão tornando-se mínimos; aqui, os tecnocratas também o almejam. Mas a que custo social? Vão despejar na rua milhões de funcionários públicos que irão fazer o quê? Vão tornar-se ambulantes, com setecentos mil carrinhos de cachorro-quente. O Brasil, eu repito, tornou-se, uma imensa feira repleta de bobagens eletrônicas. Seria cômico se não fosse trágico. Com a entrada dos estrangeiros, então, estamos nos tornando, como diria o velho Lima Barreto, uma república neocolonial bruzundanga. E estamos conversados. Toda essa modernidade que apregoam, de boca cheia, os políticos, é mentira. O Brasil é um abacaxi de cinco séculos.E o povo, pobre, largado, lascado, mais uma vez sobra no aperto, no espeto. Como dito num filme italiano, o povo tem uma única bandeira: a sua própria pele. O povo só sabe dançar, no carnaval e na vida. O povo é a vítima totalmente indefesa.
– Caramba, que discurso esquerdista! Você é daqueles comunistas remanescentes? É a favor do controle estatal total? Meu amigo, o muro já caiu, a Rússia dançou, que coisa mais antiga... Temos é que nos modernizar e acabou. Temos que... – O doutor quer comprar rede de dormir? Olha a rede! Faço barato!
– Não, obrigado. Que saco esses vendedores! É doce, chiclete, amendoim torrado, bagulhos! Mas o que eu ia dizendo que...
– Moço, dá uma moedinha pra eu comprar leite pros meus irmãozinhos!
– Não tenho agora, garota. Caramba, o que tem de gente vendendo bagulho e pedindo... Mas eu digo é que o Brasil está no rumo certo. Tem que privatizar mesmo. Tem que cortar os excessos e o governo...
– Olha o chocolate importado! Olha o carrinho coreano!
– Não, obrigado. Porra, assim não dá pra conversar. Vou mandar fazer uma placa com os dizeres: NÃO, OBRIGADO! Assim não dá pra conversar. Fica esse pessoal vendendo porcaria, interrompendo a conversa o tempo inteiro! E é pra todo lado: no estacionamento, na fila de padaria, no cinema... Assim não dá! Mas o que é mesmo que eu ia dizendo? Ah sim, pois é. O Brasil vai muito bem.
PARVO PATETA PINTOR DE PODRIDÕES E PASTICHES
(Um notável pateta monologa para uma plateia sonolenta e alheia; uma plateia de assalariados)
– Hoje eu acordei assalariado e só por isso engordei três quilos! O perfeito imbecil, já o sou. Vejam as minhas roupas de etiqueta, vejam a minha conversa previsível, os meus gostos. Sou um cidadão; portanto, sou uma besta quadrada, uma anta consumidora, um João-vai-com-os-outros, porque não cheguei a optar e desisti. Acompanho todas as marés, e se o mar o quiser, que me atire à areia ou às pedras!
(A plateia dorme com pipocas dentro da boca, apesar de adolescentes fazerem algazarra no fundo do teatro. Um político gordo ronca na terceira fila. Sua baba escorre pelos cantos da boca.)
“entretanto, você caminha / melancólico e vertical / você é a palmeira,
você é o grito / que ninguém ouviu no teatro / e as luzes todas se apagam.”
Carlos Drummond de Andrade
– Plateia! Ele, o assalariado, é a versão pretensamente avançada do antigo escravo e dos servos chicoteados. Os chicotes, hoje, podem ser a laser, mas a dor, baby, é a mesma! O assalariado é o boi no lento matadouro das empresas. Carneiros? Governo de lobos e hienas. Quem disse isso, plateia? Choderlos de Laclos? Quem?
(A plateia acorda, contrariada. Em seguida, volta a dormir, enfiando a cabeça no fundo das poltronas.)
– O notável pateta monologador! Sou mantike e sou manike! (profeta e louco). Aurum nostrum non est aurum vulgui! (nosso ouro não é vulgar). Me ouça ou não, ó plateia inconstante, plateia sem cabeça! Permiti-me a redefloração de vossos tímpanos saturados de berros publicitários e de senhas de venda do capitalismo! Acordai, acordai! Ou então que durmam eternamente no berço esplêndido! Anões, anões! Vós, gigantes, tornados anões e figurantes! Plateia, eu parei meu carro no posto Ipiranga e um bigodudo gritou alguma coisa. Estava um sol danado em nossa pátria. Foi um brado heroico, retumbante, o do bigodudo. Ele disse outras coisas, foi chegando gente, veio um pintor e registrou a cena. Havia portugueses olhando; no fundo, alguns ingleses cochichavam. E o bigodudo continuava: Salve, salve. Novo Mundo!
(O pateta termina este trecho incompreensível de sua fala e ninguém se perguntou que diabos seria aquilo. Ipiranga, bigodudo, pátria amada, idolatrada, salve, salve? O pateta agora descansa um pouco, até de sua própria voz monocórdia e monótona. O pateta “descansa de si mesmo”(Nelson Rodrigues), enquanto descasca uma banana.)
– Plateia, geografia!
(O pateta retorna à sua fala, tendo outra banana nas mãos e uma bola de futebol equilibrada em sua cabeça.)
– Ó Calcutá de misérias, Las Vegas de ambições, ó planeta de boçais que não percebem o esplendor da vida! Eu me envergonho por vocês. Seus valores, ó crianças, são pequenas adaptações aos costumes instituídos na era do Pleistoceno! Seus hábitos são bárbaros, apesar do verniz civilizatório que meteram por cima de sua tosca matéria! A mim não enganam, se não resolveram ainda nem o problema da alimentação! Boçália, boçália! Planeta de boçais destruidores e arrogantes! A tortura, quantas formas? Ditaduras, quantas? Métodos de domesticação, quantos? Amados, tendes quantas formas de prostituição? E crimes ainda não codificados, quantos?
(O pateta berra a plenos pulmões. O cenário é maravilhoso: uma noite tropical iluminada por uma lua cheia e enfeitada por palmeiras que balançam à brisa de suave maresia. A plateia, contudo, dorme. A plateia não ouve o patetear do pateta e não vê a beleza da noite cenográfica. Terminado o trecho de sua fala, o pateta chuta para longe a bola e come a banana que carregava.)
– Escutem Josés Ninguém, escutem Marias conformadas! Maldita Ibéria! Maldita Ibéria que nos entortou as almas! Almas barrocas e torturadas! Latinoibéria!
(Grita o pateta, acordando novamente a plateia. Esta, assustada, lhe grita de volta, três vezes:)
– Será possível? – Será possível? – Será possível?
– Deixe-nos em paz, poeta parco!
– Deixe-nos em paz, poeta parvo!
– Deixe-nos dormir, seu puto pestilento!
(A plateia volta a dormir e o poeta a olha, embevecido.)
– Uma pequena reação, que bom! Então, canto para que durmam. Canto uma canção de ninar. Mais tarde cantarei uma canção de despertar. Quando poderei cantar a canção de viver?
(O pateta canta uma canção de ninar. O poeta canta uma canção de acordar. Inutilmente, porque a plateia quer o conforto do sono, o abandono da mente, o descanso de seu próprio silêncio; a plateia quer esta pequena morte, desejando que se prolongue ao máximo esse alheamento. A plateia quer o teatro calmo, escuro e protetor. A plateia quer, do teatro,um útero. O pateta deixa que durma o público. Sai de cena. Depois de instantes, volta acompanhado de um violão e uma maravilhosa morena de cabelos tão negros que refletem a azul. Ele se senta em um banquinho, a morena se recosta em suas pernas.)
– “Sozinho no escuro, / qual bicho-do-mato, / sem teogonia, / sem parede nua, / pra se encostar.”
(O poeta recita estes versos de Carlos Drummond de Andrade e olha para sua musa. Ela lhe ergue o belo rosto e o brinda com um sorriso tão doce e tão carregado de meiguice e beleza que o pateta sente todo o seu corpo amornar. Sem pudor, ele fita o rosto da moça e se alegra. A musa toma-lhe a mão e, para dizer do ritmo que ele irá tocar, a deposita sobre o contorno de seu seio esquerdo. O príncipe sente a batida calma do coração da moça. Seu pulsar é o mesmo que o das estrelas acima e de qualquer vida microscópica abaixo. A música que o príncipe poeta pateta dedilha agora ao violão se casa com o ritmo do coração da musa, comungando então com todas as coisas: o mar ao lado, as estrelas acima, o rumor do vento nas palmeiras. Neste instante, o rosto do poeta serena, as rugas se acalmam, sua face se torna rósea e uma sabedoria silenciosa pousa em seus olhos. Momentos depois, o poeta desperta desta rara comunhão. A musa não se mexe, recostada em suas pernas.O pateta ergue os olhos à plateia que dorme, feliz. O cenário continua noturno e eterno.)
– “A cidade dorme, ambição descansa.”
(velha música brasileira)
– A cidade quando dorme é quase pura. (Fala o poeta à sua musa.)
– Mesmo nos antros mais sórdidos, nas esquinas mais sujas. Assassinos, quando dormem, são homens e se igualam. Prostitutas vão dormir e se igualam. Banqueiros se esquecem do mar sujo dos lucros, e se igualam.
– Viva o socialismo noturno! (diz, brincando, a musa.)
– Viva o socialismo do sonho! (diz a ela o poeta.)
– Viva a democracia verdadeira do silêncio! Viva a igualdade no descanso, viva a fraternidade das horas de inconsciência! Viva os governadores quando dormem!
– Todo homem tem direito à igualdade no sono e no sonho. (iz novamente a moça.)
– Não são necessárias declarações universais nem documentos comprobatórios; esta condição é imanente. Todo homem quando dorme é um santo. Viva a igualdade indiscutível que a noite traz às pessoas. Ao amanhecer, elas ainda são puras; somente após ao meio-dia, somente nessa hora é que elas retornam à sua condição de estupidez! E esta não lhe é definitiva e sim evolutiva porque é superável, esperemos. Coletivismo, ecologia, autoconhecimento; holismo, comunidades, despoluição; utopias que borbulham na cabeça dos humanistas, pensamentos de filósofos, música de músicos, canto de místicos, vozes de homens evoluídos, religião de idealistas quietos em seus cantos. Que a humanidade acorde de seu sono e sonhe acordada a sua nova realidade. Espiritualize- se, no sentido metarreligioso. Além de si, além de seus primeiros socialismos, além de suas superstições rudimentares.
(depois de recitar docemente este texto esperançoso, o poeta se dirige à sua musa)
– Minha dolce musa, vós que sois a encarnação de todas as belezas do mundo, vós que sois uma filha de Gaia, vós que entendeis minhas lamúrias e ladainhas, pateteei agora socialisticamente o meu sonho e volto a patetear minhas patetadas de quixote quixotesco, me calando porque fiz o que desejava, e, pelo som da voz, me personalizo. Se falo, consigo ser um pouco menos covarde, um pouco menos surdo-mudo; um pouco menos robotizado, um pouco menos domesticado, um pouco menos escravo. Assim, consigo menos tristeza nos olhos e mais dança no corpo. Menos culpa na carne, algum riso no rosto. Porque, Dulcinéia, há também no mundo tanta beleza e na vida tanta surpresa que os sonhos nunca se findarão; e como existem estes méis haverá também as flores. Detrás das revoluções traídas e dos fracassos é sempre alimentado o sonho e a Ideia. O sonho não acabou, John. O sonho sobrevive ao sonhador. O sonho, repito, sobrevive ao sonhador.
(A plateia acorda e não entende o silêncio atual do palco. Vendo a moça, a plateia inveja o poeta e se enraivece, o provocando)
– Poeta paspalho, pintor de podridões e pastiches, pateta piegas, professor de mau português, parta, pare, passe. Podes? Pense. Parta. Paris. Pique-se, Pã, metido a pai. Palhaço metido a rei. Quer palmas, ó papa? Jogue os seus papiros no pântano. O seu paraíso? Perdido, seu pavão. Que se tornem pedras os seus pés. Sem pena! Seu perfume, peregrino, as pérolas porcas que nos atira são falsas. Bata as pernas, logo! Torne-se pó! Seu poder é porco, falso príncipe. Poesia sua, imundície pegajosa. Parta com seu palavrório pedante e deixe-nos dormir em paz!
CATILINAS
– Ok, o baronete de engenho (D. Fernando I) lascou com os nossos salários e as pessoas não podem mais sair de suas casas. Os bulevares (?) estão vazios, os bares estão às moscas. A cidade não tem dinheiro, por isso perde as cores e cheiros. A cidade está quieta e se emburrece diante de aparelhos de tv. A cidade sem salários. O baronete louco foi afastado do poder; contudo, levou tudo de arrasto (sua casaca recheada de dólares e ouro).
– Cidade dos corruptos, a mágica das verbas desviadas... E os barnabés sem salário, os barnabés sem nada. Aos domingos, eles compram coca-cola na padaria. Bermudas e sandálias Rider falsificadas.
– Vamos no shopping?
– Ou que tal uma cuba-libre na rodoviária?
– O dinheiro dá?
– Peguei algum na financeira, a juros exorbitantes.
– Não acabaram os juros?
– Pergunte aos agiotas...
– Que agiotas? Os imobiliários ou os que negociam carros? – Pergunte a qualquer um deles, pombas...
– Quosque tandem, Catilinas? (“até quando, Catilinas, abusareis de nossa paciência?” – Cícero, o romano).
– O tempora. O mores. Ó tempos, ó costumes...
– O baronete de engenho arrasou com a cidade, o município, o estado, a nação, a pátria... Cinco séculos e o saque continua, impávido colosso. Confúcio, dai-me paciência. Gandhi, dai-me
paciência, porque ando fodido e desesperançado.
– Sic vos non vobis mellificatis apes. Assim, vós, mas não para vós, fabricais o mel, abelhas...
– Virgílio.
– "Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro".
– Virgílio? Padre Antônio Vieira.
– Sejamos sensatos, mudou o governo, mudaram os ministros, é outro o Congresso!
– O velho às vezes se mascara de novo que é para o povo ser novamente enganado.
– Viva a democracia da miséria!
– Convenhamos, é melhor que as ditaduras da miséria.
– Mas o voto não representa o eleitor
mas a sua ignorância
a sua ignorância
a sua santa ignorância
– A sua santa ignorância, culpa das elites predatórias e incultas.
– A democracia é a melhor das formas de governo, ou seja, a menos pior.
– Pra você ver aonde anda a raça. A democracia é uma farsa milionária.
– Mas as coisas vão mudando, things change! No Congresso, fora os empresários, fora os latifundiários, já tem uma pequena quantidade de sujeitos bem-intencionados!
– Pulgas no corpo do mamute antediluviano... Ah ah,o mamute dos velhos ricos, o mamute dos gordos salafrários, o mamute dos baixinhos do Nordeste.
– Do sul, também!
– Sim, ladrões há, em todas as geoeconômicas. O mundo é dos cínicos.
– Plantados no dorso do mamute republicano.
– Como anda a censura? Já voltou?
– Acho que não, por isso estou sapecando o meu xingatório!
– Manera, frufru, manera!
– Não manero não, porque represento o desabafo de milhões, milhões de atormentados. Não manero, quer ver? Porra, merda, xixi, boceta, com mil cancros gotejantes, que país!
– O encanador nos rouba. O agente imobiliário nos imola.
O advogado nos aporrinha, o chefe nos torra!
– Avante, foncionários e cidadões!
– Funcionários e cidadãos!
– Um dia, isso muda!
– Dirão a seus filhos os nossos tataranetos...
– Somente um povo instruído e civilmente organizado, um povo altivo e com identidade, somente assim se estancará a pilhagem.
– Os pilhadores não deixam que o povo aprenda.
– Esse o dilema, o ovo, o x, o eureka. Como retirar do lodo o povo?
– Mundão velho, atrasado!
– E magnífico. Não maldiga a vida, maldiga a raça humana primitiva.
– Isso muda, um dia?
– Um dia isso muda, dirão a seus filhos os nossos tataranetos!
– As coisas mudam, devagarinho.
– A História é um bicho-preguiça. Você viu quantos anos foram necessários para a queda do muro de Berlim?
– Tanto muro falta para ser derrubado! Quantas mentiras!
– Haja pedreiros...
– Haja jovens que neguem o repetir-se do velho!
– Haja jovens que não se cooptem em troca de um cargo de confiança.
– “Não diga à mamãe que entrei para a política. Ela ainda pensa que eu toco piano naquele puteiro”...
– Os burros de carga, os manés covardes...
– Manera, no fundo todo mundo é vítima. De sua era, de sua época e de seu estágio.
– Cadê o Colombo? Precisamos urgentemente da descoberta de um Novo Mundo.
– Ele já existe, só que em estado embrionário.
– Dirão a seus filhos os nossos, etc.
– Não é assim, olhe bem, este novo mundo já existe.
– Pra encerrar, palavras de um neurolingüista: Programe-se, você chega lá! Insista, não desista! Se o destino te der um limão, faça uma boa caipirinha, etc. Se o destino subdesenvolvido de um país de economia acorrentada aos estrangeiros te der um limão Mc Donald’s, faça uma limonada for export, mané.
– Ou Zé. Zé brasileiro. Os fudido. Nóis.
NO TABULEIRO DA MINHA RUA
no tabuleiro da minha rua, tem...
pivete, tem puta, tem
tem briga, tem choro, tem
tem gente no lixo, tem
político na sauna, tem
fanática rezando, tem
tem gangue ajuntada, tem
tem gente como ninguém...
isso aqui, êô, é um pouquinho de brasil, iaiá...
MOVIOLA
PM
camelô
pivete
puta
pé-inchado
mendigo
– puta que pariu!
PM
camelô
pivete
– bala perdida matou
bala perdida acertou!
quem?
PM?
camelô?
pivete?
puta?
pé-inchado?
mendigo?
– puta que pariu!
PM
camelô
pivete
puta
pé-inchado
mendigo
EU FIZ, EU TENHO, EU COMPREI
Do nascimento à tumba, qual é o bicho que
passa toda a vida se auto-afirmando?
O bicho homem masculino. Haja otorrino.
CARAMBA
Passamos toda a década de 1990 empobrecendo... dez anos, como se estivéssemos viajando
em estrada cada vez pior e sem acostamentos...
LA NAVE VA
tem gente de carne e osso
tem gente que é só a roupa
tem gente que é só uma gravata
tem gente seca, áspera, espinhosa
tem gente que não dá pra ver,
porque sempre está detrás de alguma coisa:
– você já viu o presidente?
tem gente que é só pose
tem gente que é só boca
gente-nariz,
gente que é só uma orelha dentro de um automóvel
tem gente que é inteira
tem gente que é osso e carne
tem gente que é inteligência
tem gente que é maravilhosa
tem gente de todo gen
tem gente zen
tem gente que se esconde e se frequenta no escondido
tem gente que se esgueira, gente inseta
tem gente que vive no século XVI
tem gente há muito no século XXI
(como o amigo que produz verduras sem pressa nem veneno; o amigo que produz alimentos sem o vício do lucro fácil e rápido; o alimento em si, puro, fresco e bem-tratado; o outro irmão inunda de ideias as ruas; o outro canta, o outro atua)
ENTREVISTAS IMAGINÁRIAS
I – O PORTEIRO
Estados Unidos, o povo é tudo louro, forte. Muito ricos, né?A gente vê na televisão. Tem o cinema, como é que é? Aquele nome de cigarro. Roliúde, isso. Os americanos são um povo famoso, rico, gordo, tudo mora em mansão. Eu vi no cinema. Eles gostam de quebrar os carros, botar fogo, todo filme tem. Também tem muita briga, tiro, violência. Eu não entendo, eles são tão ricos e ficam brigando, pra quê?
Pois é. Estados Unidos. Eu sei que é longe, muito longe. É bem pra lá do Ceará, do oceano. É os países desenvolvidos, não é? Eu vi no jornal. Tudo louro, o povo, né? A gente vê nos filmes.
II – O ASCENSORISTA
O pessoal fala que é público, que é do povo; que Brasília é nossa e coisa e tal, mas é tudo mentira. Se Brasília fosse minha eu vendia tudo e ia embora. Não é minha coisa nenhuma.
O prédio é público mas não te deixam entrar. As ruas são públicas mas eu não tenho carro pra andar nelas. Eu tenho é que andar à pé, na grama. Eu tenho é que atravessar correndo a rua. Se eu não fizer isso, os carros me atropelam. Eu tenho é que enfrentar a lama e a poeira. Na rua, nem banheiro tem. A gente tem de se aliviar é atrás dos pontos de ônibus, nas árvores. Esse negócio de público é conversa fiada. Tudo tem dono, até o governo. Brasília é só o meu ganha-pão. Não é minha coisa nenhuma, eu moro é bem longe dela. Duas horas de ônibus, a distância. Todo dia, eu tenho que viajar duas horas de coletivo, dormindo e batendo a cabeça no vidro. Nossa cidade, uma pinoia.
III - O CONVERTIDO
O homem, o pastor, ele fala bonito. Eu não entendo tudo, mas é bonito. Ele fala com força, fica vermelho, deve ser importante que nem os políticos. Ele fala do paraíso, com todo mundo rico, tomando coca-cola na beira da piscina, já pensou? Ele pede donativo, tem muitos; tem o semanal, o mensal, tem os especiais. Eu dou. Já pensou ficar rico que nem o sujeito que ganha na loteria? O pastor promete. Eu volto pra casa só pensando na piscina. Churrasqueira, um carrão desses importados, já pensou?
IV - O BÊBADO
Por que eu bebo? Pra tudo ficar cor-de-rosa. Tudo fica lindo, as pessoas tornam-se interessantes, as mulheres tornam-se mais maravilhosas ainda, o dia fica agradável, tudo sorri. Quando eu bebo tudo fica bem. Tudo se alegra, não há misérias. Então, é isso:
Eu bebo pra consertar o mundo.
(...)
RELATÓRIO
Aí, o ET mandou um relatório para a nave-mãe, que estava estacionada no céu com o disfarçado aspecto de uma enorme e disforme nuvem branca:
“Os terráqueos ainda são tão atrasados que vivem metidos em guerras fratricidas. Ainda escravizam uns aos outros e mal tateiam as tecnologias da luz.Conhecem pouquíssimos raios e utilizam combustíveis fósseis e motores à explosão !!! (continua)
(Se você tem interesse em ler todo este livro, em formato de e-book e ao preço de 5 reais, procure o autor nos endereços: cosobeta@gmail.com ou Carlos Vieira Charles - facebook).
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