terça-feira, 19 de março de 2019

Livro A Casa das Lembranças (TRECHOS) Carlos Vieira Charles




I - AS CIDADES PREFERIDAS (IMPRESSÕES DE VIAGEM)









MARCO ZERO





“(...) deixar o escritório e andar pelo mundo com um coração de homem”

Carl G. Jung (adaptado)



Viajor, viajante, viandante, já dormi em casa de índio

Comi arroz, peixe em água e sal, e tracajá assado no almoço, às sete da manhã

No sertão agreste, com as mãos comi farinha com rapadura na cuia

Fui em muita festa de roça, funções de religiosidade simples e verdadeira

Casamentos, folias de reis, empoeiradas e humildes festas de santos



Andei na imensa Belém-Brasília



Pernoitei em casa de pescador de praia ainda inóspita

Dormi com aranhas negras me olhando do teto

Tomei banho de balde

Tomei água de chuva e de cachoeira



Tive de beber água salobre e passei três meses esperando uma hepatite que não veio

Pesquei piranha preta no Araguaia, vi fazendas com bate-paus e trabalho escravo

Acampei perto de jacarés - olhos vermelhos ao foco das lanternas



Corri o Amazonas, majestoso

Fui às estranja, velha Europa

Aos EUA, recusei-me, não quis ver o império



Subi a Machu Picchu; estive perto do Pico da Bandeira, sob total neblina

Já fiquei em pousadas rústicas e hotéis de luxo

Vi o faustoso tédio dos ricos e a dor dos pobres

Passei dias comendo arroz puro, peixe e tomates verdes

Em um paraíso perdido sem asfalto nem luz elétrica

Para mim, como diz o cantor poeta

Qualquer lugar debaixo do céu e em cima do chão, está bom

Também pisei em Windsor, Montecarlo, Roma, Paris, Versailles, o mundo dos ricos

Andei quieto em meio a gente de todas as classes e tipos

Trabalhadores, peões, índios, pescadores, gente humilde,

criancinhas com barriga d’água,

Também passei por urbanos loucos, garotões drogados, torcedores vikings,

Damas da noite, assassinos motorizados, religiosos fanáticos

E oportunistas, ególatras, carreiristas, corruptos, pilantras pelintras, estelionatários

bem ou mal-vestidos – escória!



Já fui bastante em casas de ricos, imensas e vazias

(Engraçado, ao invés de unir, o dinheiro afasta as pessoas umas das outras)

Certa vez em um hotel, vi, sem saber e por puro acaso, uma festa de bandidos velhos e decadentes

Risos, esgares, caviar, canapés, cocaína, uísque de doze anos, banda musical,

helicópteros, guarda-costas e prostitutas



Por vezes, senti fome, senti frio, senti medo

Andei de carro velho em estrada de cascalho no alto da cordilheira dos Andes

Outra vez, um ônibus perdeu os freios na caatinga; parou tombado no barranco

Doutra vez, num forró de praia, um pescador embriagado, incomodado com a presença

nem sempre agradável

Dos turistas, riscou a parede com um facão, a centímetros de minhas costas

Viajei de jangada, ferry-boat, veleiro, velhas barcaças a motor, cheirando a óleo

Andei no luxo e no lixo, tédio e miséria

Vi moça bonita de tudo o que é cor e toda condição social

Em tudo o que é canto ou lugar: a beleza, ao menos ela, é socialista

Como a inteligência, que existe em todas as classes, é democrática



Mas viajor, viajei e, se pudesse,

Ainda estaria a fazê-lo

Viajante, viandante

(Mais um cavaleiro errante?)

Um pequeno cidadão do mundo

No mundo físico das estradas

Muitos km bem rodados

Vendo a vida real, crua e palpável

Sem mídia, sem publicidade e sem política







I- PATOS DE MINAS



Aos conterrâneos







Minha cidade natal, pequena

Cada esquina suscita uma lembrança

e um afeto

A infância, a juventude feliz de músicas,

musas e noitadas

Não era a época, nós é que éramos bonitos e cheios de vida:

- hormônios fervilhando!

O frescor desses verdes anos, deem-me um

pouco mais!

Uma máquina de viajar no tempo

Uma pequena regressão à alegria em

estado bruto

Pura, clara e cristalina

Me deem um pouquinho mais do gosto

Da inocência ingênua da infância

e da adolescência:

O grupo Marcolino de Barros

O Colégio Estadual Professor Zama Maciel

A infância é um assombro

A adolescência, uma explosão de vida

As serenatas, o “clube da esquina”, as pescarias,

as garotas em flor

O cineclube, o pessoal do teatro, os festivais na praça

Aquela época que tivemos, de efervescência cultural e artística

O grupo musical Versus e nosso “sucesso de público e crítica”: Aviso



(...) no centro do mundo

Tem dinheiro acenando

No meio da vida

Tem um passo mancando

(letra: Wander Porto)



As casas todas onde morei

A casa de fundo da avó Nair

A casa da tia Chiquinha

A casa perto do mato

A casa do pai do amigo

A casa perto da pracinha

(quantas foram, mãe?)

O hotel-pensão, a vila

Até que revoei



Mas volto quando posso, não abandono meus laços



Minha cidade natal, pequena

Alento, prazer e memória

Raiz e chão, poenta vermelha

Do que fui e sou, adulto e criança

A ti, o meu sincero apreço e apego

Levo-te no peito, nos olhos e na mochila

Cidade minha, cidade nossa, Patos de Minas







II BELÔ



Aos amigos belorizontinos





Belô é à noite

Os cheiros

Os bairros, os bares, as belas moças, revoadas de ninfas!

E a serra, a música, o friozinho, a boemia

Belô são amores findos mas lindos

Como nos versos do mestre Drummond:

“as coisas findas, muito mais que lindas, estas ficarão”



Belô é a estudantada em algazarra

Nossos festins na rua Timbiras, universitários

Os casórios, o Mercado Municipal, os botecos da esquina, as folias

O hotel São Paulo-Minas, as viagens a trabalho pela prefeitura

As namoradinhas, aquela lourinha de sangue quente e nome russo

A música do James Taylor na discoteca, a multidão apressada

A antes literária rua da Bahia, a subida da Afonso Pena, a Toca da Raposa

O kaol (prato rápido) do Café Palhares, lá no Centro

(o meu, com pernil, faz’ favor)

A comida boa, quente e cheirosa de todo canto



A música; o “rei” Milton Nascimento e sua corte: Beto Guedes, Lô Borges,

Toninho Horta, Wagner Tiso, Túlio Mourão, 14 - Bis, Flávio Venturini

O excelente João Bosco e muitos outros



Preciso ver-te mais Belô, tanto(as) amigos(as) !

É só pisar na Praça Sete ou nos Confins

Estou em Belô - é festa -, fico feliz!









III BRASÍLIA, MINHA ILHA





Aos amigos brasilienses



Nesta ilha de vidro num mar de cerrados: Brasília

Eu gosto é dos grandes espaços abertos e da liberdade

Aqui, posso pintar o cabelo de verde ou roxo,

ninguém liga!

Brasília é cosmopolita, um pouco

De provinciana, nada tem, isso é certeza

Uma cidade experimental, um acampamento, um canteiro de obras, até hoje em construção

num Brasil também se erguendo aos poucos



Terra de oportunidades e possibilidades

Em Brasília existe o caldo de gentes de todas as partes

Mineiros, goianos, nordestinos, nortistas, cariocas e gaúchos

Gente do Mato Grosso, do Acre, estrangeiros de vários países

Uma classe média bastante informada e politizada:

Passamos por invasão militar na universidade, pessoas desapareceram

Ajudamos a jogar ovos no Henry Kissinger, o emissário do Império

Fizemos imensa carreata até a Casa da Dinda, no impeachment

do presidente barão de engenho (Collor)

Participamos da criação de sindicatos fortes nos anos 1980

Sindicatos que depois perderam sua força e rumo

Vimos, com tristeza, tanques e tropas invadirem a Esplanada dos Ministérios

em 26 de novembro de 1986

Eram os tempos finais do militarismo, os últimos urros do monstro





Assim, Brasília já tem história: JK, Jango, Jânio, os movimentos sociais

Brasília já tem alguma história e quem sabe daqui não saia um novo país

Porque de Petesburgo, cidade também inventada no meio do nada

É que nasceu a revolução russa

Existem muitas semelhanças entre Brasília e São Petesburgo:

Cidades modernas em meio ao subdesenvolvimento à volta, ilhas

Brasília, quem sabe, uma Petersburgo do Sul, uma Petrogrado, Juscelinogrado

Não nos dê nos próximos decênios (o Brasil anda a passo de tartaruga)

Uma revolução possível e pacífica:

educação





ATO DE REDENÇÃO EM ANEXO





(Redima-se Brasília. Brasília não é só política e politicagem. Brasília não é só corrupção.

Há gente normal: trabalhadores, funcionários, estudantes, artistas, comerciantes.

A corrupção no Brasil é generalizada; é uma pandemia, uma epidemia nacional. Muitas

vezes, a verba some é na outra ponta, no estado ou no município. Muita gente suja as mãos

e põe a culpa em Brasília. Os políticos que estão em Brasília não são da cidade. Assim,

redima-se, no que tiver direito, Brasília.)







IV UMA VILA DE PESCADORES NO NORDESTE







Praia que some de vista, deserta

O céu, um mar azul de doer (ou será verde?)

A água tépida e transparente, coqueiros balouçantes

Ah meu Taiti, minha Bali,

Meu Nordeste brasileiro!

Eu vou é ficar por aqui

Tornar-me biólogo

Estudar a vida sexual das baleias jubarte

Viver de bermudas

Namorar uma caiçara morena, bem índia

O que mais? Passar a vida descalço

E sem esquentar a moleira

Com as misérias, o terrorismo, a corrupção pandêmica,

O Império Americano, a sórdida mídia,

O efeito estufa, essas mazelas




(...)


LUCY IN THE SKY









Eu tinha quinze anos

Em casa, tocava Pink Floyd em um cabo de vassoura:



Home, home again (lar, de novo em casa)
I like to be here (gosto de estar aqui)
When I can (Breathe) ( quando posso) (Respirar)


E a lourinha passava todo dia

Em frente à loja do meu tio Abílio
Run, rabbit run (corra, coelho, corra)

Cocotte, coelhinha sardenta, cabelos longos

Gostava de usar o jeans da moda, bem apertadinho

Vinha da Escola Normal, de uniformezinho, sainha, ela e dezenas de garotas

À hora certa, eu ia à porta para vê-la(s): meio-dia

Enquanto o rádio da loja do tio Abílio tocava:
Lucy in the Sky with Diamonds (Beatles)

Rock and Roll Lullaby e Raindrops Keep Falling on My Head (B.J.Thomas)

Me and Mrs. Jones (Billy Paul)

É inegável: naquela época já havia muita música estrangeira, da boa e da

ruim

Mas o rádio também tocava Belchior, Raul Seixas, Chico Buarque, Caetano Veloso,

Milton Nascimento (os mineiros, modéstia às favas, têm ótimo gosto

musical)

Me lembro da BR-3 e da música do casaco marrom

Que uma moça cantava: Evinha, a irmã de algum dos Golden Boys:



Eu vou voltar aos velhos tempos de mim

Vestir de novo o meu casaco marrom

Tomar a mão da alegria e sair

Bye bye esses sinos Alone!



(Casaco Marrom – Trio Esperança)





Era 1974 e eu, funcionário júnior, trainee, vendia zíperes, botões coloridos,

Elásticos e Linhas Corrente e Drima para as costureiras:

Armarinho Vieira

Ficava na rua General Osório, defronte à Casa Vieira, doutro tio que eu

gostava

O tio Antônio de Deus Vieira, um homem à frente de seu tempo

Um ótimo patrão de seus empregados, amigo

Passeava com as crianças em seu carro-banheira americano: Galaxie

Criou um time de futebol para os funcionários

Pagava participação nos lucros – um humanista!



A coelhinha? Muitos anos depois, eu contei a ela essa história

De que ela enfeitava os meus meios-dias, me encantava

E, oba, ganhei uns beijos de brinde e de indenização





O CLUBE DA ESQUINA







Na rua Marechal Floriano, esquina com Barão do Rio Branco

1974/1975/1976, a gente crescia junto, a turminha

O nosso particular clube da esquina

A gente ia crescendo e virando gente, moços e moças

Nos apoiando uns aos outros e nos salvando

Nós nos salvamos! Das dificuldades de crescer e das sombras

Da Tradição. Sobrevivemos!



As primeiras paqueras

As primeiras festinhas

As primeiras contradanças

A “sangria’ (feita de vinho tinto diluído em água, açúcar e frutas)

A primeira vodca com Fanta, o hi-fi

A primeira cuba libre e as primeiras atrações inocentes

Tudo sob o olhar vigilante dos pais nas frestas das janelas

Sem saber nada do que ocorria no país, a terrível ditadura

A gente se reunia quase todas as noites
Dez, quinze (pré-) adolescentes batendo papo

E cantando Raul Seixas, Fagner, Milton Nascimento, Bread, Supertramp

Elton John, Bee Gees, Rod Stewart, Paul Mc Cartney, Belchior:



Às vezes você me pergunta

Por que é que eu sou tão calado

Não falo de amor quase nada

Nem fico sorrindo a seu lado

(Gita, Raul Seixas)



Sem droga, sem briga, inocentes

Cantando com aquele inglês de cantor de churrascaria: “embromation” (“embromação”)

A gente pouco sabia do idioma, mas cantava com emoção:



I’m a simple man (sou um cara simples)

So I play a simple tune (e canto uma música simples)

‘ Never been so much in love (nunca amei tanto)

And never hurt so bad (e nunca me machuquei tanto)

At the same time (…) ( ao mesmo tempo – tradução livre)



(Simple Man, Grahan Nash)





My sweet Lady Jane (minha doce Lady Jane)

When I see you again ( quando eu te vejo de novo)

You servant am I ( sou seu criado)

And will humbly remain (e humildemente permanecerei assim)

(...) Wedlock is nigh my love (...) (o matrimônio está chegando, meu amor)

Her station, right, my love (sua posição está garantida, meu amor)

I pledge myself to ( me ajoelho pra você)

Lady Jane  (tradução livre)



(Lady Jane, Rolling Stones)



Os inocentes garotos e garotas

O Benjamin Silveira, Beto Castro, Almir (Mirim) Gonçalves, Zecão,

Wilson “Gambá”, Jorginho Chegury, Vilmar Amâncio, Edinho Braga,

A Rosana, Ávila e Sibele, Marisa e Ster,

A Josa, aia e tutora das meninas



Na esquina da rua Marechal Floriano com Barão do Rio Branco

Na mureta (ainda existe?) ou na soleira de loja que foi açougue do sô Olívio,

“venda” e verduraria

Está sentada boa parte do começo de minha adolescência

O nosso querido clube da esquina








(Se você tem interesse em ler o restante deste livro, em formato de e-book e ao preço de 5 reais, procure o autor nos endereços cosobeta@gmail.com ou Carlos Vieira Charles - facebook. Obrigado).



















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